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ATALAIA, Vila Nova da Barquinha, Portugal
Vivendo nesta terra há 30 anos vou perguntar à história e à tradição qual a origem desta localidade. Desejo saber quem neste atractivo sítio erigiu a primeira construção, quais as obras que foram nascendo, a sua idade e as mãos que as edificaram, quais os seus homens ilustres e os seus descendentes, quem construiu as estradas, os caminhos, as pontes e as fontes. Quão agradável será descobrir em cada pedra os nossos antepassados levantando com palavras o sonho do nosso futuro. Atalaia, 18-11-2007.

22.12.13

Os Autos da Barquinha - Gelo por Sal (De Emílio Miranda)

 “Tagus, Tejus, Tejo.
Muitos nomes, um mesmo rio.
Fenícios, Cartagineses, Romanos e Árabes rasgaram as suas águas, fazendo dele uma estrada de eleição…
(...)
A história do Tejo é uma história milenar de que a maioria dos mortais apenas pode fazer vagas suposições, muitas delas baseadas no saber adquirido pela experiência de ver os elementos a interagirem com o rio e com a terra. Ao longo de séculos, os homens sulcaram as suas águas, fintado a sua braveza, servindo-se do obstáculo que constitui para definirem fronteiras e barreiras contra exércitos, inimigos ocasionais e todo o tipo de perigos, alguns mesmo imaginários. E esse conhecimento dá-lhes às vezes a ilusão de que o compreendem, de que conhecem as suas manhas, mas a verdade é que a vontade do Tejo e os seus caprichos são insondáveis.”
Será verdade que o caminho-de-ferro viria para ditar a morte do rioTtejo?
Para descobrir o encantamento deste livro é fundamental quer recuemos no tempo.
O Tejo era a fronteira. Dum lado começava o norte e do outro iniciava-se o sul. Daí a nossa região estar marcada por fortalezas militares singulares (Ozezere, Almourol e Cardiga) marcadas por um intercâmbio dominado na faina fluvial pelas embarcações. O Tejo sempre foi além de fronteira natural, um corredor de comunicação entre as terras altas e as terras baixas.
Ainda hoje, em Vila Nova da Barquinha, se podem vislumbrar os antigos poiais e escadas, sempre mais altos do que o normal curso de água para evitar a sua entrada no interior dos armazéns. A zona do Centro Cultural é a que mais confessa sobre a vida antiga do núcleo urbano barquinhense, local onde se privilegiou o comércio, a sua união com o rio, as suas vivências e até as suas cheias. É neste quarteirão que se perpetua os vestígios da nossa história cunhada de arquitectura e de urbanidade.
Neste quarteirão podemos vivificar as lajes de pedra calcária guarnecendo os pavimentos dos pisos térreos, vestígios da adaptação local à vivência das inundações que, frequentemente, e com a sua adversidade nos invadiam. Cheias que eram uma bênção, pois com a fertilização dos campos nasciam os denominados “nateiros” nos quais se produziam abundantes cereais e produtos hortícolas.
Neste espaço urbano os pisos térreos eram ocupados com armazéns e comércio, quase sempre ligados à faina do rio. Os fluxos comerciais entre as Beiras, e Lisboa faziam-se, principalmente, pelo rio, levando e trazendo permanentemente produtos que aqui eram transbordados, comercializados e levados do e para o interior dos territórios adjacentes, como é exemplo o sal, o azeite, as madeiras, a retrosaria, o gelo etc.
 “ O gelo - amontoada em pequenos montículos será depois acartada em cestas, às costas, até ao poço de gelo mais próximo. Nada é deixado ao acaso, para que o gelo resultante seja da melhor qualidade. Limpo, cristalino e sem impurezas. Liberto de gostos e dissabores …
Há que arrebanhar a maior quantidade possível de neve enquanto se mantém solta e límpida, e depois guardá-la naquelas cavidades profundas, onde será compactada até se transformar em gelo. Tapado por palha e fetos, o gelo permanecerá ali até ao final da primavera, início do verão, altura em que será então cortado em grandes blocos e transportado em carros de bois, pela serra, até Constância e Barquinha de onde embarcará em barcaças, rio abaixo, desta feita até Lisboa, aos armazéns do Martinho da Arcada, e outros de menor nomeada, para deleite de senhores e senhoras”.
O Sal - Os soldados romanos chegavam a ser pagos em sal, de onde vêm as palavras “salário”, “soldo” (pagamento em sal) e “soldado” (aquele que recebeu o pagamento em sal). Na Idade Média o sal era conhecido como “ouro branco”. Ouro por ser o tempero mais usado nos alimentos. O sal vinha da foz do rio Tejo.
Descarregado o gelo, e de modo a rentabilizar o frete, é carregado o sal, chegado das salinas vizinhas da capital, sobretudo de Alcochete, onde é de excelente qualidade,
rumando desta feita até ao interior do reino, acondicionado em sacas de serapilheira nos porões das mesmas barcaças…”
Era um dos produtos mais comercializados cujo topónimo deu nome à nossa Rua do Sal, aqui mesmo ao lado. Sabe-se que na Rua do Sal existiram dois importantes depósitos, um no edifício da Família Pereira e outro no edifício da Família Condeço.
Há a magia de uma história que nos narra a presença dos franceses na 1.ª invasão, a sua passagem pelo Zêzere e a chegada a Tancos.
A sua obra está cheia de obscurecidas personagens, plena de sentimento de pertença e intemporalidade.
O percurso ficcional e verídico dos acontecimentos interligam-se com o humanismo e o sonho das suas personagens, desde as trincheiras nas terras da Atalaia até à fuga de barco para o outro lado do Tejo, para os lados do Arrepiado, ou dos amores dos homens do rio.
Desde o retrato da Vila de Tancos, à época, com o apogeu comercial em contraste com os armazéns vazios aquando da chegada dos franceses que tudo pilham.
… Não esquecem os mais velhos as histórias que falam do tempo em que ao Arripiado se refugiaram os da outra banda, quando os franceses invasores chegaram a Tancos para pilharem e incendiarem teres e haveres; abominável realização, a da guerra. Melhor seria se a cobiça se transformasse em festa e a fraternidade em alimento da alma. Àquele rossio acodem diariamente dezenas de carros e carroças, puxados por mulas, cavalos e juntas de bois em busca do que se torna necessário nas povoações do interior, e que chega em embarcações que sobem e descem o rio: as provenientes das terras altas cruzam-se muitas vezes com as que chegam de Santarém, Vila Franca e Lisboa. Mercadorias passam de mão em mão, são carregadas e descarregadas, transacionadas enquanto o diabo esfrega um olho. Notícias e rumores circulam: o rio é um pasquim, e, o mundo, um circo, um local mágico de invenções e exageros”
Emílio, narra-nos a parte violenta, a chegada dos Franceses à Barquinha. Aqui vão encontrar a resistência possível. Em ficção, coloca barquinhenses de hoje, no tempo das invasões francesas. Homens de Atalaia com afectos e histórias de vida, com sentimentos de dor, de suor e de lágrimas, que vêm a chegada do invasor que tudo assola: os sonhos, as terras e o próprio sustento.
O drama de Benilde, a filha do moleiro, que se apaixonou pelo invasor francês e que, descoberta a relação amorosa de ambos, veio o seu amado a ser chacinado pelo povo de Tancos.
O mistério das Mortes Ramiro e Roberto, que afinal incomodam muita gente!
A relação do médico Dr. Ambrósio com a Rosa-dos-Ventos, a curandeira, as tascas, os caminhos, as fontes e as pontes.
Prende-nos à narrativa a dinamismo das personagens. Uma linguagem singela onde os valores morais de alguns personagens alcançam crueza intemporal. É um romance emocionante, intuitivo que nos absorve e nos ensina a respeitar, ainda mais, os nossos antepassados e nos dá a conhecer a dureza dos trabalhos no rio. A construção da Ponte da Praia do Ribatejo, a primeira ponte ferroviária do país, no tempo de el rei D. Pedro V. A obra atrai-nos às lembranças dos nossos antepassados, às velas brancas, esvoaçando pelo límpido rio Tejo abaixo, em cujas margens, cobertas de canaviais, acena um alto bosque de choupos pretos. Recorda-nos a grande azáfama e atividade da Vila onde ecoavam os sons dos malhos de construção de barcos e os ásperos berros dos barqueiros, a confusão  dos atos de comércio onde homens se apinhavam, os pequenos barcos na margem, as mercadorias que iam embarcando para o fornecimento de Lisboa, as mulheres a lavar à beira do rio.
Gelo por Sal
Tantas histórias e tantas memórias!

Quem quiser ler que leia, pois o Tejo, pela mão do Emílio, conta orgulhoso a sua história!

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